segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

VANDA FERREIRA: A BUGRA SARARÁ

Raquel, Ademar e eu.
Nossa história vem de longe, muito longe. Vez em quando nos encontramos e sempre é um acontecimento emocionante, uma festa particular em nossos corações.
Nosso penúltimo encontro foi no camping, o por-de-sol brindou nossos laços fraternos, nossas histórias, nossos destinos abençoados e nosso abraço carinhoso.
Tudo é muito íntimo, mas Raquel escreve tão lindamente que parece uma produção dos clássicos de literatura. Comovida opto por compartilhar com meus leitores.  

VANDA FERREIRA: A BUGRA SARARÁ


Raquel Naveira



Vanda Ferreira é bugra sarará. Tem sangue de índia do sul de Mato Grosso, mulher brava e aguerrida. Tem cabelos alourados, com mechas vermelhas. Um jeito ao mesmo tempo rude e doce de quem ama o seu rancho, o Dom Fernando, às margens do córrego Ceroula, na saída de Rochedo.

É nesse lugar que essa produtora de literatura, artes visuais e meio ambiente, sonha e desenvolve seus projetos: sente o grito da terra, que clama por preservação; observa o entardecer pantaneiro; luta pela construção de um recanto rural para convivência com a natureza e para uma roda de prosa sobre cultura, arte e educação.

Um teatro de arena projetado por um padre salesiano que primeiro habitou o local é palco ideal para o encontro entre Natureza e Poesia. Do ponto central, a voz reverbera cristalina pelo semicírculo das arquibancadas de cimento. O eco ressoa pelo ar, pelas pedras, pelas águas. Imagino a bugra Vanda e sua assistência: poetas, crianças, pássaros.

É nesse sítio, no silêncio e nas noites de inverno, que Vanda, a bugra, escreve seus livros, suas anotações poéticas e filosóficas, enquanto ferve o café, prepara o bolo de milho, depura o licor de jenipapo.

Presenteou-me com O Testamento, onde celebra o encontro amoroso, suprema realização afetiva, associado a uma idealização espiritual. Amor universal, forte e profundo. Atração carnal que se transforma em experiência quase esotérica, que liberta as forças secretas da natureza, tornando o amante um ser superior a si mesmo, quase divino. Vanda se vê como mulher metamorfoseada em mito, síntese perfeita de espírito e matéria, sexualidade e transcendência mística. Por isso utiliza palavras e expressões como “feitiço”, “outro reino”, “degustação com a visão”, “ritual mágico”, “imaginária cruz”, “campo do destino”, “profecia da emoção”, “lepra da tristeza”, “monte sagrado”, “mistérios ciganos”. Vanda, a bugra, “unta-se com as ervas santas, guardadas em seu cofre de memórias.” Amor que cria “dialeto próprio, fulcrado na gratidão” e no companheirismo. Compaixão: o último fruto do amor.

Em Passagens, Vanda abre o baú das recordações e lembra passagens de sua infância, como a das idosas que rezavam o terço feito de lágrimas de Nossa Senhora.

O pacto entre infância e natureza fica claro neste trecho: “...amar as árvores, a chuva, a lua, o sol e expressar gratidão por meio de zelo e respeito para com as minas d’água e a pureza da terra são votos de amor pela vida, que firmei ainda menina e que foram fielmente cumpridos”.

A voz do romance às vezes é de Vanda, na primeira pessoa, às vezes de Maria Joana, sua bisavó. Há alguns bons achados literários como a descrição do quarto da avó: espaço sagrado, cama de alta cabeceira, colcha de piquê branca, a janela com cortina de renda. E, de repente, a renda esgarçada, o tecido se desfazendo aos poucos numa “tecelagem de células mortas”. O tempo que tudo dilacera, desgasta, devora.

É verdade que Vanda, sempre poeta, tem dificuldade de soltar-se na narrativa. Acaba tingindo tudo de poesia, essa outra “camada de pele”.

Vanda, a bugra, crê que a realidade que cerca o poeta é a natureza. A paisagem campestre é uma espécie de espelho, onde ela vê refletida a sua cabeleira de fogo, ruiva e sarará.

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